Artigos

A tóxica área de TI

Quem me dera fosse só ela, não é mesmo? 

Conviver com as diferenças não é uma das melhores qualidades do ser humano. O homo sapiens nunca teve boas relações com outras espécies de primatas, ajudando, inclusive, na extinção de algumas delas. No entanto, a história nos mostra que a interação entre diferentes culturas, em um primeiro momento traz tragédia, mas também faz emergir prosperidade.

Ainda assim, somos extremamente intolerantes com quem é diferente de um padrão que nos é imposto por um projeto de sociedade que existe desde a antiguidade. 

Disclaimer: o autor deste texto não é de esquerda, muito menos de direita. Não venha encher o saco.

Não existe meritocracia em uma sociedade desigual

Quando se mora em uma periferia onde não se tem nem saneamento básico, onde as pessoas constroem seus banheiros cavando buracos no chão de seus quintais. Quando sua casa é uma palafita em cima de um pântano. Convivendo com ruas sem asfalto e alagamentos que fazem com que animais como ratos e cobras entrem em sua sala. Quando não se tem recursos para comprar um uniforme para ir para a escola. Ou quando se perde amigos para as drogas ou para o crime. Ou quando um policial mata um amigo seu. Ou quando você é acordado no meio da madrugada com uma rajada de metralhadora. Ou quando você se pergunta por que seu coleguinha de colégio mora em um apartamento no centro da cidade enquanto você mora em uma casa de madeira caindo aos pedaços? E você aprende que é porque ele mereceu e você não.

https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2019/05/20/veja-quem-sao-as-vitimas-da-chacina-no-bairro-do-guama-em-belem.ghtml

Para o pobre, ser subjugado e humilhado é um estado quase que constante. E essa humilhação muitas das vezes converge em revolta contra o sistema. E para lutar contra o sistema, o pobre só tem duas opções: sentar a bunda em uma cadeira e estudar, ou ir para o crime e nunca mais se sentir humilhado novamente.

Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal, por menos de um real
Minha chance era pouca
Mas se eu fosse aquele moleque de touca
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca
De quebrada
Sem roupa, você e sua mina
Um, dois! Nem me viu! Já sumi na neblina!
Mas não
Permaneço vivo, prossigo a mística!
27 anos, contrariando a estatística!
— Racionais MC’s

Bem, eu escolhi estudar, sem me importar com as diferenças de classe entre meus concorrentes e eu. Hoje, tenho consciência de que, ter crescido em uma situação de pobreza me trouxe uma série de limitações.

Entrei em uma faculdade de computação sem nunca ter tido um computador na vida. E estranhei que meus colegas de turma conheciam coisas das quais eu nunca tinha ouvido falar. Eu não conseguia entender nada quando eles conversavam sobre os componentes de uma placa mãe, afinal de contas, eu nem sabia o que era uma placa mãe e ficava me questionando de como eles sabiam aquelas coisas.

Certa vez em uma conferência, um palestrante falava sobre algo relacionado a redes de computadores, virei para meu colega ao lado e perguntei o que era um wi-fi? Ele me olhou, meio que, não acreditando e me explicou prontamente do que se tratava. Foi aí que caiu a ficha. Eu estava em uma turma elitista. Não só isso, o curso de computação era extremamente elitista. Eu, que era um dos melhores alunos no ensino médio e um dos melhores alunos do cursinho pré-vestibular, me senti um cidadão de segunda classe. Isso me desmotivou e me fez abandonar o curso de Ciência da Computação em uma universidade federal. Acabei com o sonho de minha mãe de ter um filho formado, o que meu irmão veio a realizar alguns anos mais tarde, se tornando a única pessoa com diploma de graduação em uma família de dezenas de pessoas.

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/05/17/brasil-registra-uma-morte-por-homofobia-a-cada-23-horas-aponta-entidade-lgbt.ghtml

Este post não é para contar a história da minha vida, que por sinal, não é nenhuma história de superação ou coisa e tal. Porque, apesar dos percalços, eu tive uma série de privilégios que muitas pessoas não tiveram. Tive uma base familiar sólida, tive pais que batalharam para me dar educação. Enquanto que, muitas crianças que cresceram comigo, nem mesmo sobreviveram para contar a história. Tive pessoas que me ajudaram, que pagaram a passagem de ônibus para eu ir ao colégio, pagaram meu cursinho pré-vestibular e que compraram meu primeiro computador quando entrei na faculdade. E a cereja do bolo dos privilégios, e é aqui, onde realmente começa o post: apesar de meus antepassados terem sido escravizados, a cor da minha pele é branca. E quando me dei consciência de que o grau de melanina na minha epiderme, e a minha sexualidade me davam vantagens sobre outras pessoas, aí amigo, eu fiquei muito puto! Então, não venha falar de meritocracia comigo.

Reflexões sobre privilégios e arrogância

Existem alguns tipos de profissionais que são bastante requisitados no mercado. Por meras questões mercadológicas são profissionais que conseguem uma rápida ascensão social e acesso a bens de consumo que a maioria das pessoas não possui. Não é muito difícil encontrar profissionais de TI com ego super inflado.

Antes do advento das redes sociais, nos fóruns de discussão, já presenciávamos o comportamento tóxico e arrogante de muitos desenvolvedores. Não é fácil para um novato entrar em círculos fechados e fazer parte de um casta de profissionais rock stars, ou quando você faz uma pergunta em um fórum e é tratado como se fosse nada. Ou quando você trabalha para uma pessoa que por um motivo totalmente fantasioso, se vê como superior e se acha no direito de tratar seus funcionários como lixo. Não é fácil, e isso sendo homem.

De uns anos para cá, o movimento de mulheres da TI veio crescendo. Eu, nas minhas limitações, achava isso uma bobagem. Afinal, eu tratava todos de forma igual, homens e mulheres (ou pelo menos acreditava nisso). “Nada contra o movimento de mulheres na TI, tenho até amigos que são”. No entanto, eu não conseguia entender o porque de ter tão poucas mulheres nas empresas e nos cursos de computação e isso me deixava intrigado.

https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/comportamento/pesquisa-revela-preconceito-contra-mulheres-no-mercado-de-tecnologia-da-informacao,c423c23c1766162ac4d8dc46b1ace968d5e7jks3.html

Com o tempo comecei a analisar o comportamento dos homens ao meu redor. Nas empresas, nos eventos, na rua. Sempre me vi como alguém desconstruído. Afinal, cresci em uma favela cercado de todo tipo de gente, com as quais eu fazia questão de aprender tudo o que podia. Mas um dia, percebi a mim mesmo como alguém que era machista e homofóbico. Como eu poderia ser homofóbico tendo amigos gays? Como eu poderia ser machista tendo amigas mulheres? Afinal, como um liberal, sou a favor dos direitos individuais e da liberdade do indivíduo em ser quem ele realmente é. Foi aí que percebi que o racismo e o machismo estão entranhados em nossas famílias, em nossas instituições e em praticamente toda atividade humana. Vivemos em uma sociedade patriarcal, erguida sobre sangue de pessoas escravizadas.

Mesmo vivendo em uma comunidade cercada por violência, onde sangue de descendentes de escravos continua sendo derramado, e crianças crescem vendo mulheres sendo subjugadas, entre outras mazelas, eu não me dava conta do que estava ao meu redor. Eu estava vivendo em uma bolha ideológica. Eu estava do lado do opressor. Anos depois, arrumei uma namorada negra e feminista, aí que levei um tapa na cara, quase que literalmente falando.

https://extra.globo.com/casos-de-policia/morte-de-jovem-por-seguranca-gera-protestos-acarnemaisbaratadomercado-23456250.html

Se você entra em uma farmácia e nenhum segurança fica seguindo você, bem… provavelmente você é privilegiado. Se você consegue andar de mãos dadas, ou abraçar seu parceiro na rua, sem correr o risco de apanhar, você deve ser alguém privilegiado. Se você não precisa esconder sua sexualidade dos seus pais ou dos seus amigos, você tem certos privilégios. Se você não precisa escolher entre lanchar no colégio ou ir de ônibus para casa, você é privilegiado. Se você não ouve barulhos de tiros na madrugada, se nunca levou um sacode da polícia só por morar em um local de risco, se nunca viu um corpo na porta de sua casa, você é privilegiado. Se você nasceu branco, você tem privilégios, se você é hétero, tem privilégios. E se você é homem, isso é foda, você tem privilégios que as mulheres não possuem.

Então, quando o marginalizado consegue passar em uma faculdade de computação, ele mereceu mais do que você, criado a leite com pêra, porque você só precisou estudar, enquanto ele, precisou enfrentar muito mais do que desafios de álgebra.

Movimentos

Geralmente, eventos de TI são antros de arrogância e preconceito. Não há lugar melhor para falar sobre essas questões. Afinal, a diversidade é muito importante para as empresas, se tornando cada vez mais um fator competitivo. Empresas com indivíduos diversos tendem a ser mais inovadoras. Mas a verdade é que grandes eventos de TI estão “cagando” pra isso.

No entanto, muitas comunidades estão abraçando a inclusão e a representatividade na TI e isso vem causando certa polêmica e foi o que me motivou a escrever este post e pretendo falar delas com detalhes em outra ocasião. Pessoas com privilégios reclamam desses movimentos, pois não querem ouvir o que as minorias tem a dizer. E por que ouviriam? Afinal de contas, tais problemas não as afeta. É mimimi ou, como gostam de dizer, esquerdopatia.

E hoje, temos um establishment que é contra o avanço dos direitos das minorias, tornando-se necessário batalhar por um ambiente seguro para essas pessoas, que são subjugadas e postas à prova todos os dias de suas vidas.

Agora, o barulho que os marginalizados estão fazendo é estrondoso e está irritando muita gente. E se você, sente que seus privilégios estão sendo ameaçados, bem… sinto te dizer que isso é só o começo.

Aê, na época dos barracos de pau lá na Pedreira, onde cês tavam?
Que que cês deram por mim? Que que cês fizeram por mim?
Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho
Agora tá de olho no carro que eu dirijo
Demorou, eu quero é mais, eu quero até sua alma

— Racionais Mc’s

8 Comentários

  • Adriano Ohana

    Apolônio… Geniaaaaaaaaaaaallllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll… Estava mesmo preparando um texto sobre isso com o título “Eu já fui um idiota e talvez ainda seja.”.

    Caracaaaaaa, perfeito mano. Muitos claps e já compartilhando.

  • Mateus Linhares

    Mais que genial, esse texto é necessário!
    Não faz muito tempo que li um comentário do tipo: Até na “””nossa””” área ta chegando esse tipo de conversa?
    É, meu amigo… repito sua frase:

    “… se você, sente que seus privilégios estão sendo ameaçados, bem… sinto te dizer que isso é só o começo.”

  • Joel

    Sou gay e estou estudando Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Reconheço meus privilégios por ter nascido homem cisgênero e branco, porém mesmo assim é difícil não sofrer discriminação quando você não se encaixa perfeitamente no estereótipo heteronormativo, ainda mais nesse ambiente predominantemente masculino de TI. Mas isso há de mudar, e o que me move é pensar que estou na vanguarda dessa mudança e que minha presença é necessária.

  • Yoshi

    Muito legal o texto, Paulo.

    Assim como você já fui taxado de “esquerdista” por usar o termo “privilégio” em conotação negativa. Muitas pessoas confundem com ser simpático ao liberalismo ou libertarianismo com ser anarcocapitalista, conservador ou, pior, reacionário. Daí quando falamos em algo como “combater privilégios” ou “o Estado deveria…”, viramos esquerdistas.

    Gostaria de acrescentar um privilégio: estado/cidade de nascimento/criação. Numa de minha primeiras entrevistas de emprego aqui em São Paulo, a recrutadora disse “eu não sabia que existiam faculdades de tecnologias lá [no Pará]” e ainda ficou tirando sarro da minha pretensão salarial dizendo que vim do Pará pra pedir aquele valor.

    Você falou em grandes eventos… ok, mas cada um pode fazer a sua parte para ajudar os menos privilegiados. Exemplos: Não tenha preconceito com negros, gays, trans ou mulheres para vagas onde eles não são comuns caso seja entrevistador ou avaliador para uma vaga. Não peça foto nem endereço em CV (apenas cidade, isso basta). Curta, siga, compartilhe notícias e eventos de comunidades e página que apoiam minorias em TI (QA Ladies, PyLadies, IOS etc).

  • Fernando Vieira

    Parabéns !
    Texto abrangente, me enquadro em parte nele, mas o maior desafio é colocar as diferenças em segundo plano e ter determinação de estudar e aprender, pois o sucesso é consequência, óbvio que quando digo “colocar as diferenças em segundo plano…”, não é simples, mas para se ter sucesso tem de se enfrentar os desafios.

    Sucesso sempre !

Deixe um comentário para Adriano Ohana Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *